segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Prefácio de Braulio Tavares

“Retratos Falados” - Astier Basílio


Assim como um caricaturista capta com o olhar os traços mais característicos de um rosto e depois os reconstrói e amplia com a caneta, um poeta é capaz de produzir retratos que são distorcidos mas verdadeiros – pelas escolhas verbais, pelas imagens, pelo modo de projetar a subjetividade-que-escreve sobre a objetividade de um personagem público.  São assim os Retratos Falados que Astier Basílio reúne neste volume, onde bluesmen, jogadores de futebol, escritores, repentistas, etc. passam por uma espécie de Raio-X poético, revelando detalhes que existem neles e que nós na primeira vez vemos sem ver; só vemos de verdade quando os reencontramos no poema.

É assim que o poeta enxerga em Ronaldo Fenômeno algo de “puma e rifle” e vê em Joe Cocker o “cavalo” de algum “exu ou súcubo”;  vê na lenda misteriosa de Robert Johnson “outros finais com infinitos dentro”, e faz Roberto Bolaño vislumbrar “meu próprio féretro a caminho enquanto em casa escrevo”. Conhecer os retratados implica em perceber as sutilezas visuais, psicológicas ou biográficas captadas pelo poeta.  Não conhecê-los, no entanto, não redunda em prejuízo para o leitor, que pode se dedicar a ver o poema como só poema, como a única porta possível naquele momento para tentar captar a essência de um personagem por trás de um nome desconhecido.

Essa poética da captação da dinâmica poética do real foi uma das boas heranças que João Cabral de Melo Neto deixou em nossa poesia, ensinando-nos a ver a semiótica essencial das coisas, o seu modo de dizer-se sendo.  Herdamos o modo como Cabral comparava o mar ao canavial, ou as casas nordestinas aos sepulcros.  Cabral também justapõe poéticas distintas em O sim contra o sim, como parte desse trabalho de tentar captar, com invenções verbais, coisas que o olho percebe mas o cérebro só acusa quando o verso espouca.

Astier Basílio organiza de modo interessante sua coleção de retratos poéticos, começando pelos mais recentes e mais elaborados, e somando a eles, numa segunda parte, uma outra série, de formatos variados, de poemas antigos em que o método já se esboçava.  Retratos de amigos ou colegas de profissão fazem parte do ofício, e todo poeta coleciona os seus (Drummond em Viola de bolso, Bandeira em Mafuá do malungo...).  As Chapas e Instantâneos da 2ª. parte (poemas escritos entre 2005 e 2009) se propõem como coisa passada, a começar por estes dois termos meio fora-de-moda para designar “fotografias”. São esboços de quando o poeta, seguindo os passos dos mestres, rascunhava seus retratos em métrica aleatória ou emprestada.  Um trabalho que foi se organizando a si próprio até redundar nos dezesseis poemas da primeira parte, de 2010-2011, em que a forma ideal se cristalizou: duas estrofes de sete linhas longas, de métrica irregular, com rima toante única do começo ao fim.

Astier Basílio tem uma jurisdição poética que o torna capaz de visualizar com a mesma facilidade o “clown branco” em Bob Dylan e o “transe com cronômetro” de Ivanildo Vila Nova; de anotar com palavras precisas os “coágulos de azul” de Bispo do Rosário e a “sede que ninguém vence” em Manuel Xudu.  De Bergman a Eric Clapton, seus cliques poéticos pegam sempre o fotografado num ângulo em que já o vimos mas não registramos.  São poemas eminentemente descritivos, mas com uma liberdade imagética quase surrealista, de grande subjetividade.  A tal ponto que o retrato torna-se uma parceria indissolúvel entre fotógrafo e fotografado, do mesmo modo como muitos retratos na história da pintura dizem mais sobre o artista que os pintou do que sobre os reis, hoje anônimos, que posaram para eles.

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